Lenine sobre o estado: combate e ilusão

O livro “O Estado e a Revolução”, escrito por Lenine de uma assentada em setembro de 1917, e que deixou incompleto, será o texto mais desenvolvido da segunda geração do marxismo sobre a natureza do Estado. Creio que, para as análises atuais sobre o que é e o que deve ser o Estado, tem três dimensões que devem ser sublinhadas (e discutidas).

A extinção do Estado

A primeira é a sua interpretação do que Marx e, sobretudo, Engels, tinham escrito sobre o assunto, em particular depois da Comuna de Paris, 1871, que tanto marcou a sua época. Embora Lenine notasse que Marx parece mais estatista do que Engels, por admitir a necessidade de estado num regime comunista, argumentou que ambos concordariam que se trataria de um estado em vias de extinção: “A expressão ‘o estado extingue-se’ é muito feliz, porque exprime simultaneamente o caráter gradual do processo e a sua espontaneidade”. A frase é interessante e pouco “leninista”, pela sua ênfase na espontaneidade do processo. No entanto, indica de seguida que o estado ainda seria necessário para proteger a propriedade comum e assegurar a igualdade na repartição dos produtos.

Engels, em contrapartida, explicou que “o proletariado toma o poder de estado e transforma primeiro os meios de produção em propriedade do estado. Mas, assim, suprime-se a si próprio como proletariado, suprime todas as diferenças de classe e igualmente como estado”. É um processo, mas um curso determinado “na medida em que é a maioria do povo que anula por si própria os seus opressores, deixa de ser necessário um ‘poder especial’ de repressão”. Acrescenta então Lenine, “é nesse sentido que o estado começa a extinguir-se”.

A influência da experiência da Comuna é evidente, pelo caráter heróico da primeira sociedade socialista e também pelas medidas que tomou e que Lenine resume: o primeiro decreto suprimiu o exército permanente, seguiu-se a determinação da eleição, revogabilidade e pagamento a todos os cargos e funcionários públicos do salário de um operário. É bem sabido que este modelo não foi aplicado pelo poder soviético, confrontado logo com uma guerra civil e invasão estrangeira e ainda com graves dificuldades económicas e sociais. O estado não começou a extinguir-se.

Os correios alemães

Este otimismo sobre a espontaneidade da extinção do estado a partir da revolução levou Lenine a simplificar o que seria a sua gestão económica. Escreveu ele que “um espirituoso social democrata alemão dos anos 1870 disse dos Correios que são o modelo de uma empresa socialista. Nada de mais justo. Os Correios são atualmente uma empresa organizada na base do modelo do monopólio capitalista do Estado” e seriam o exemplo a seguir. Naquele caso, os trabalhadores disporão “de um mecanismo admiravelmente aparelhado do ponto de vista técnico, libertado do parasitismo e que os operários associados podem bem por a funcionar contratando eles próprios os técnicos, os vigilantes, os contabilistas e retribuindo todos, como acontece a todos os funcionários públicos, com um salário de operário”. Conclusão: teremos “toda a economia nacional organizada como os Correios”.

Rapidamente se verificou que este conceito era inaplicável. Muitas estruturas produtivas são diferentes dos Correios, nem todas são monopólios e são mais complexas em qualificações e diversidade de produtos. O que então Lenine revelava é que, sem a experiência prática, os bolcheviques não sabiam que dificuldades iam enfrentar na gestão do estado e da economia.

Abundância

O fundamento cultural tanto para a antecipação de um processo espontâneo e de uma gestão simplificada como nos Correios era a crença num rápido crescimento da produtividade, consolidando a sociedade com uma abundância igualitária. Isso é afirmado por Lenine com ênfase: “a base económica para a extinção total do estado é o comunismo chegar a nível tão elevado de desenvolvimento que desaparece qualquer oposição entre trabalho manual e intelectual”, a principal fonte de desigualdade. Desse modo, o estado “poderá extinguir-se completamente quando a sociedade realizar o princípio ‘de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades’”. Nesse momento, escreveu, “a repartição dos produtos já não exigirá o racionamento pela sociedade dos produtos entregues a cada um: cada um retirará livremente os produtos ‘segundo as suas necessidades’”.

As objeções a esta ideia de futuro foram discutidas no livro. Alguém terá zombado desta hipótese, dizendo que as pessoas vão querer trufas, carros e pianos. Indignação de Lenine: com a nova sociedade, mais consciente, desaparecerá “o homem médio que hoje é capaz de desperdiçar ‘segundo o seu prazer’ as riquezas públicas e exigir o impossível”. Haverá abundância e contenção, tanto mais que nesta democracia todos participam na gestão do estado. Esta é a sua hipótese mais controversa, até hoje desmentida pela vida: por maiores ganhos de produtividade e de coordenação, mesmo admitindo uma reconversão que proteja o ambiente, não se alcança um sistema de abundância que dê a todas as pessoas tudo o que querem. Havendo restrições e gestão de recursos limitados, haverá uma organização a que se chamará estado, seja ele o oposto da forma de poder oligárquico que agora existe.